Quando cuidar adoece: sobrecarga, precarização e os impactos da organização do trabalho na saúde mental dos médicos
A saúde mental dos médicos deixou de ser um tema restrito aos bastidores dos hospitais e passou a ocupar lugar central no debate sobre saúde pública. Estudos indicam que o sofrimento psíquico nessa categoria não decorre de fragilidades individuais, mas está associado a um modelo de trabalho marcado por sobrecarga contínua, instabilidade e precarização progressiva da carreira médica.
Uma revisão bibliográfica publicada na Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional, que analisou 43 estudos sobre a síndrome de burnout em médicos, aponta que o fenômeno tem se tornado cada vez mais frequente, especialmente após o impacto da pandemia de Covid-19. De acordo com a Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (CID-11), o burnout é compreendido como um fenômeno ocupacional, caracterizado por exaustão emocional, despersonalização e diminuição da sensação de realização profissional, resultante da exposição prolongada a estressores no ambiente de trabalho.
As pesquisas mostram que médicos figuram entre os profissionais mais vulneráveis a esse tipo de adoecimento em razão de jornadas excessivamente longas, elevadas demandas assistenciais, pressão constante por desempenho, acúmulo de responsabilidades e dificuldades para conciliar a vida profissional e pessoal. A esse cenário somam-se fatores estruturais recorrentes, como má organização institucional, falhas de liderança, escassez de recursos e a crescente burocratização do cuidado, que ampliam o desgaste emocional e o sofrimento psíquico.
Os dados indicam que a exaustão emocional ocupa posição central no burnout médico, manifestando-se por fadiga mental persistente, dificuldade de recuperação e sensação contínua de esgotamento. A despersonalização surge frequentemente como um mecanismo defensivo, traduzido em distanciamento emocional, perda de empatia e atitudes cínicas no exercício profissional. Já a redução da realização profissional aparece associada à frustração, à percepção de incompetência e à perda de sentido do trabalho médico.
As consequências desse adoecimento extrapolam o indivíduo e alcançam o funcionamento dos serviços de saúde. O burnout médico está associado ao aumento do erro assistencial, à queda da qualidade do cuidado, ao absenteísmo, ao abandono da profissão e à elevação dos custos em saúde. No plano pessoal, observa-se maior incidência de ansiedade, depressão, distúrbios do sono, sintomas psicossomáticos, uso de substâncias psicoativas e aumento do risco de ideação suicida (Duarte et al., 2022; Jarruche & Mucci, 2021).
A literatura aponta de forma consistente que intervenções focadas apenas no indivíduo são insuficientes para enfrentar o problema. Estratégias como mindfulness, manejo do estresse ou treinamentos de resiliência podem produzir alívio pontual, mas não atuam sobre a origem estrutural do adoecimento. Nesse sentido, reforça-se a necessidade de mudanças organizacionais, com revisão das condições de trabalho, redistribuição de tarefas, redução da sobrecarga e fortalecimento do suporte institucional.
Nesse contexto, ganha espaço a reflexão sobre a importância de trajetórias profissionais que ofereçam maior estabilidade, segurança e reconhecimento, fatores apontados como protetores da saúde mental médica. Vínculos empregatícios mais estáveis, previsibilidade de carreira e ambientes organizacionais estruturados tendem a reduzir a exposição crônica ao estresse ocupacional e a favorecer o equilíbrio psíquico (Duarte et al., 2022).
Entre os caminhos existentes, a atuação médica nas Forças Armadas surge como uma possibilidade considerada por parte dos profissionais, por oferecer vínculo formal estável, estrutura institucional definida e maior previsibilidade profissional, características que dialogam com os fatores organizacionais identificados nos estudos como relevantes para a proteção da saúde mental dos médicos.
Em um cenário no qual médicos adoecem ao tentar sustentar sistemas sobrecarregados, os dados indicam que discutir saúde mental implica, necessariamente, discutir a forma como o trabalho médico está organizado. Garantir estabilidade, segurança e reconhecimento profissional deixa de ser apenas uma escolha individual e passa a configurar uma estratégia essencial para preservar a saúde de quem cuida.
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Matéria escrita por:
Professora Amanda Braga, coordenadora pedagógica da MedConcursos, com mais de 10 anos de experiência na gestão educacional do ensino superior e especialista em Neuroaprendizagem.
Fonte:
DUARTE, A. F.; et al. Síndrome do burnout em médicos: uma revisão bibliográfica. Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional, Lisboa, v. 14, eSub0359, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.31252/RPSO.14.2022.eSub0359. Acesso em: 22 set. 2025.
JARRUCHE, L. T.; MUCCI, S. Síndrome de burnout em profissionais da saúde: revisão integrativa. Revista Bioética, Brasília, v. 29, n. 2, p. 361–371, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1983-80422021292364. Acesso em: 22 set. 2025.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-11). Genebra: OMS, 2019. Disponível em: https://icd.who.int. Acesso em: 22 set. 2025.