Análise: Impasse na Lei nº 15.157/2025: perícias de HIV/AIDS paralisadas no INSS

A Lei nº 15.157, sancionada em 1º de julho de 2025, introduziu mudanças relevantes no sistema previdenciário e assistencial brasileiro, alterando a Lei nº 8.213/1991, que regula os benefícios da Previdência Social, e a Lei nº 8.742/1993, conhecida como LOAS. O texto legal buscou reforçar a proteção de grupos historicamente vulneráveis, ao dispensar a reavaliação periódica de segurados com incapacidade permanente, irreversível ou irrecuperável, e ao exigir que as perícias médicas de pessoas vivendo com HIV/AIDS contem com a participação de um médico especialista em Infectologia. Embora a intenção do legislador tenha sido garantir maior rigor técnico e sensibilidade humanizada nas avaliações, a aplicação prática da norma revelou um impasse grave no funcionamento da Perícia Médica Federal, resultando na paralisação de milhares de processos no INSS.

A dificuldade decorre do fato de que a imensa maioria dos peritos federais não possui especialização em Infectologia, e o próprio ingresso na carreira não exige essa formação. O quadro atual da Perícia Médica Federal conta com cerca de 3.500 profissionais em atividade, número insuficiente até mesmo para a demanda ordinária do país, e completamente desproporcional diante da nova exigência legal. Além da escassez de infectologistas, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste, não há definição normativa sobre como se dará a “participação” desse especialista – se presencialmente, de forma consultiva, ou mediante teleperícia. O resultado imediato foi um bloqueio administrativo: as perícias foram mantidas em agenda, mas sem possibilidade de conclusão formal, uma vez que o requisito legal se tornou materialmente impossível de ser cumprido.

Diante desse cenário, o Departamento de Perícia Médica Federal (DPMF) emitiu, em 14 de julho de 2025, o Ofício Circular SEI nº 107/2025, com base no Parecer nº 00273/2025 da Consultoria Jurídica do Ministério da Previdência Social. O documento determinou que as perícias de segurados com HIV/AIDS não fossem canceladas, mas que o perito realizasse a anamnese e o exame físico, registrando os achados clínicos sem concluir o parecer. Os processos deveriam permanecer em exigência administrativa até a edição de um ato normativo complementar que regulamentasse a atuação do infectologista. Essa medida, ainda que juridicamente prudente, criou um efeito paralisante dentro do sistema: o segurado é examinado, mas o laudo não é concluído; o processo é aberto, mas não pode ser analisado pelas equipes de benefícios; o benefício não é analisado, ficando suspenso em uma espécie de limbo administrativo.

O impacto social e jurídico dessa situação é profundo. Pessoas vivendo com HIV/AIDS, público historicamente marcado pelo estigma e pela vulnerabilidade social, enfrentam a interrupção de benefícios essenciais à subsistência, como o auxílio por incapacidade e o Benefício de Prestação Continuada. A ausência de decisão impede o acesso a direitos correlatos, como o saque do FGTS e a isenção de imposto de renda, e prolonga uma espera sem prazo definido. Trata-se de uma situação que afronta diretamente princípios constitucionais fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal; a razoável duração do processo, assegurada no artigo 5º, inciso LXXVIII; e a continuidade do serviço público, princípio implícito no artigo 37, caput, da Carta Magna. Além disso, a insegurança jurídica recai também sobre os próprios peritos, que se veem impedidos de concluir o ato médico-pericial e expostos a dúvidas sobre a validade de seus registros, sem diretrizes técnicas claras para respaldar a conduta.

A Lei nº 15.157/2025, portanto, gerou um paradoxo normativo: uma norma criada para ampliar a proteção e humanizar o atendimento acabou inviabilizando, temporariamente, a execução de um serviço público essencial. A ausência de regulamentação específica tornou a lei impraticável. Sem definição sobre o formato da participação do infectologista, qualquer laudo emitido sem essa observância poderia ser questionado judicialmente por vício de procedimento. É um exemplo clássico de intenção legislativa dissociada da realidade operacional da administração pública. Não se trata de discutir o mérito da lei, mas sim de reconhecer que, sem planejamento e regulamentação técnica, uma política pública de inclusão pode se converter, na prática, em um fator de exclusão.

O caminho para a superação desse impasse exige ação normativa urgente por parte do Ministério da Previdência Social, com a edição de portaria ou decreto que defina parâmetros objetivos para o cumprimento da lei. Entre as medidas possíveis, destaca-se a regulamentação da participação do infectologista em caráter consultivo, por meio de parecer técnico complementar, o que permitiria a continuidade das perícias sem necessidade de presença física. Alternativamente, a utilização de teleperícia — já prevista em outras normas e experiências recentes do INSS — poderia assegurar o cumprimento da exigência sem comprometer a celeridade e a universalidade do atendimento. Também é imprescindível que sejam definidos prazos de transição e que se reconheça a validade das perícias já realizadas antes da promulgação da lei, evitando-se a nulidade retroativa de atos administrativos regularmente praticados.

Enquanto isso não ocorre, a aplicação literal da Lei nº 15.157/2025 mantém o sistema em um estado de paralisia. Milhares de requerimentos permanecem sem decisão, gerando angústia social e desgaste institucional. A intenção de proteger o segurado transformou-se, paradoxalmente, em obstáculo ao exercício do direito. O desafio agora é transformar o objetivo da lei em efetividade prática, compatibilizando o texto legal com a capacidade técnica e estrutural da Perícia Médica Federal. Essa compatibilização não é apenas uma necessidade administrativa, mas uma exigência constitucional de eficiência e de continuidade dos serviços públicos.

Em síntese, o impasse provocado pela Lei nº 15.157/2025 revela, com clareza, a distância entre as normas criadas e a realidade administrativa. É papel do poder público, da comunidade médica e das entidades de classe dialogarem de forma técnica e colaborativa, para que a proteção legal se traduza em acesso real à Previdência Social e à Assistência Social. Afinal, a dignidade que a lei pretende assegurar depende, antes de tudo, de sua possibilidade de execução.

Para finalizar, é importante ressaltar que objetivo desse texto não é discutir sobre a necessidade técnica de especialistas na Perícia Médica Federal, como a necessidade de infectologista nas perícias descritas na lei. Essa é uma discussão mais profunda que deveria ter sido realizada antes da promulgação da lei.

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Artigo escrito pelo Professor Rodrigo Souza
Médico Perito há mais de 13 anos, com mais de 35 mil processos judiciais. Mestre em Perícias Forenses, presidente da ABMLPM-PE (Associação Brasileira de Medicina Legal e Perícia Médica -PE) e da Câmara Técnica de Perícia Médica do Cremepe (Conselho Regional de Medicina – PE), além de vice-presidente do Instituto Brasileiro de Perícia Médica.

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